Conto - Amor em prato vazio
A mulher
desperta sobressaltada, mais uma vez, com o grito aterrorizado do homem.
Ergue-se do leito desfeito, acende o candeeiro de luz difusa e observa-o, sem
surpresas. O homem tem os olhos esbugalhados e olha à volta como um pássaro
inquieto, o dedo acusador a apontar para um ponto imaginário. «Deixem-me!»,
grita. «Quem, Alfredo, eles? Correrei com eles, pronto, já se foram…» O homem
volta a adormecer, mas a mulher mantém-se acordada. Sabe que permanecerá
desperta até o dia raiar. Há muito que as noites a abandonam sem querer
acolhê-la. Há muito que se mantém vigilante.
É já manhã. Levanta-se, exausta, como se carregasse o mundo ao colo. O homem ressona, tem a boca entreaberta e, como sempre, escorrem-lhe fios de saliva que se perdem no travesseiro de fronha desbotada.
Abre o frigorífico vazio, um pacote de leite, nada mais para dar de comer ao homem que se perdeu na vida, e que vagueia na sua própria amargura. Volta a fechá-lo, desolada.
O tempo arrefeceu. Observa o aquecedor. Não o poderá ligar, é uma escolha resultante da confrontação entre o aconchego e a sobrevivência. Hoje é o dia do banho semanal com água aquecida, o único luxo que têm, bons foram os tempos em que ambos se deixavam ficar debaixo do afago cálido do chuveiro a banhar os corpos suados, todos os dias, sem fazer contas à vida.
Desliza até à sala exígua e bafienta, abre a janela envidraçada. Lá fora, a chuva tamborila sobre todas as coisas. Estende as mãos, precisa de se apartar dessa indolência que não a deixa pensar, nem sorrir, nem chorar. A chuva é como um beijo gelado, como finas agulhas a tocar-lhe a pele. Cerra os olhos e espera por qualquer coisa que não virá nunca, não sabe bem o quê; talvez espere que o homem se aproxime dela e a abrace pela cintura como outrora e lhe diga que aquele dia irá ser mais um desafio, mais uma tentativa para trazer de volta Toninho que o Estado roubara, Toninho que se perdera na densidade das matas de Angola, Toninho que voltara para a Pátria sem vida, com o corpo estraçalhado e uma medalha sem préstimo.
Fecha a janela, retorna à sala ― um museu de mágoas. O espelho manchado pelo tempo espreita-lhe a imagem, uma estranha de olhar extinto, de cabelo cinzento e escasso; toca o rosto como se estivesse a tocar numa qualquer superfície rugosa. Precisa de chorar, mas as lágrimas esgotaram-se no dia em que Toninho descera às entranhas da terra como antes habitara as suas entranhas de mãe. Procura os seus retratos, cinco ao todo espalhados pela sala. Toninho bebé, Toninho na praia, Toninho fardado, Toninho fardado, Toninho fardado… beija-as a todas. O tempo transformou a saudade em amargura e não tem com quem partilhá-la, porque o seu companheiro de tantas vivências se perdeu na dor sem volta.
Veste um vestido velho e repleto de borbotos, a cor esvaecida em incontáveis invernos, mas ainda lhe cobre o corpo, é o que lhe importa. Penteia o cabelo sem pressa, a escova arranca-os facilmente avolumando-os num tufo emaranhado que não a preocupa ― se todo o mal da sua vida fosse esse, seria feliz; o que a aflige é ele, o homem, que deixou que lhe roubassem os sonhos e com quem ela sonha na desesperança, com o temor de se enredar nas malhas da loucura.
Procura as botas a um canto arrumadas e ainda cobertas do pó que colhera ao longo dos dias nas calçadas calcorreadas à pressa. Pega nelas sem vontade de as limpar, calça-as, indiferente, em gestos lentos, como se lhe sobrasse a eternidade para viver.
Desce as escadas em passos preguiçosos «bom dia, dona Laura», «bom dia, Maria, comece por limpar as paredes, estão engorduradas, uma vergonha! Não se esqueça de varrer os cantos, da última vez havia beatas e pastilhas elásticas pespegadas no chão, se não der conta do recado terei que arranjar alguém mais competente. Sabe… a sua idade…» «desculpe dona Laura, cuidarei de tudo, desculpe, desculpe, desculpe…»
Limpa, lava, esfrega, de gatas, em pé, em cima de um banco, sobe e desce, desce e sobe, o Café brilha agora, apanha os jornais velhos para ler em casa, guarda o dinheiro, pouco, mas dá jeito; comprará o Alprazolam para acalmar Alfredo, para que este esqueça as grades que um dia lhe aprisionaram o corpo e as algemas que lhe rasgaram a pele. A farmácia é logo aí, tão perto, «bom dia, duas caixas de Alprazolam, aqui está a receita, obrigada, bom dia.» Depois, a mercearia, o dinheiro mal chega, só com a reforma dela, e tem de poupar para os medicamentos do homem; por isso, suporta as dores no corpo, as enxaquecas, as dores nos rins, aguenta tudo para que não falte o Alprazolam ao homem, para que a sua mente permaneça adormecida e a sua boca não solte gritos lancinantes.
Volta para casa. O homem dorme ainda, o rosto de moribundo, a respiração tão lenta que ela se aproxima para ouvi-lo respirar. Suspira aliviada. Abre o jornal, 16 de setembro. Ele havia de gostar de lá estar, na manifestação, entre os números da miséria, de novo, a lutar. A miséria que engordava cada vez mais e o povo dentro dessa barriga gigantesca a tentar encontrar uma saída. Volta-lhe a vontade de chorar para desfazer o nó que lhe aperta a garganta, que a sufoca; chorar por ambos, por ele, uma criança agora de quem tem que cuidar. Rasga o jornal em pedaços de raiva e atira-os para dentro do saco do lixo.
O tempo passou veloz, tenta apressar-se, limpa a casa, está tudo a brilhar aos seus olhos, casa de pobre se limpa, é menos pobre; se suja, é mais pobre ainda. A banheira com veios de ferrugem está pronta para o banho quente semanal que breve irá acabar, quando dona Laura a despedir por uma mulher mais nova. Faz um esforço para o arrancar da mornidão dos cobertores, o homem murmura palavras ininteligíveis, não quer sair da cama e ela, com o esforço, tomba em cima dele, tão magro, tão franzino. Embala-o. Despe-lhe o pijama de riscas, calça-lhe os chinelos e arrasta-o desnudo para o quarto de banho, a casa é pequena, uns passitos apenas.
Passa-lhe o sabonete pelo corpo. O homem está quieto a olhar para o teto, de pé, cambaleante e tremulando de frio. A mulher abraça-o. Há tanto tempo que precisa de um abraço! Toca-o, «há quanto tempo, Alfredo, há quanto tempo!» E, pela primeira vez, em tantos anos, o desejo toma conta da mulher e ela aperta as coxas num gesto incontido. O homem parece sair do torpor e fita-a com um sorriso de pasmo, os olhos de palhaço, a baba a escorrer, «Há-des fazer a chanfana para o Toninho, não há-des? O Toninho estará a chegar do Ultramar».
Solta-se a torrente do peito da mulher que agora soluça, um rio que rompe de dentro dela, um rio feroz que rebenta a barragem que construíra para que não fosse arrastada pela corrente. O homem continua a fitá-la com o mesmo sorriso. «Volta para mim, Alfredo…»
Senta-o em frente à janela, como todas as manhãs, todas as tardes, todo o tempo e vai preparar a refeição «sopa alentejana, Alfredo, é boa, barata, aguinha quente, alhinho, um fio de azeite, um bocado de pão, um ovinho, vês? Cá nos arranjamos, não precisamos deles, pois, não? Toma o Alprazolam, para te acalmares…»
Um outro dia. Dona Laura. «Adeus Maria, já está sem préstimo, vá com Deus, obrigada por estes anos». Regressa à casa e mais uma vez se defronta com a miserável rotina sem escapatória. «Sopinha alentejana, hoje sem ovinho, Alfredo, o ovo faz mal, nós não precisamos deles, pois não?» E Alfredo: «Há-des fazer a chanfana para o Toninho, não há-des?». A mulher baixa a cabeça, já não tem o que dizer.
E mais outro dia, «sopinha alentejana, Alfredo, sem ovinho, sem azeite, sem alhos, por causa do fígado, havemos de nos arranjar, não precisamos deles, pois não? Toma o Alprazolam, para te acalmares…»
Desce à drogaria com as últimas moedas que roubara ao mealheiro improvisado de uma lata vazia de salsichas. «Bom dia, tenho ratos em casa, senhor Francisco, arranja-me um veneno poderoso?»
Volta para casa. Observa o homem, procura-o, mas é um espectro que vê; um espectro enrodilhado nos cobertores, a fitá-la com a boca aberta de espanto, a vigiar-lhe os gestos como há muito não o fazia. A mulher precisa desesperadamente de manter a frieza, não retroceder na sua decisão de seguir o atalho dos desamparados. Prepara um chá para dois, o último pacote que os esperava na prateleira vazia, «não precisamos deles para nada, pois não?» Despeja o veneno no chá, «primeiro tu, Alfredo, para ter a certeza de que me esperarás do outro lado.»
Tocam à campainha. A mulher sobressalta-se com o retinir acutilante e parece acordar de um pesadelo. A chávena solta-se das mãos paralisadas pela perplexidade e tomba sobre o soalho. O som perde-se no silêncio. Abre a porta, não está ninguém, é engano certamente. Uma raiva surda toma-a de rompante. Pega no homem e veste-o. Arrasta-o pelos degraus e descem devagar a rua como dois náufragos à procura da salvação. ‘Junta de Freguesia’ ― lê. A porta está aberta. Entra, segurando firmemente o homem e coloca-o junto do balcão. Quer que o observem. Fixa os olhos da funcionária sem vacilar. «Temos fome, o meu marido é doente, pago com trabalho.» A mulher fita-a surpreendida «não é connosco, vou dar-lhe um contacto.» «Ofereço o meu trabalho em troca de uma refeição, somos gente digna, respeitem-nos, daqui não sairemos.»
A mulher chama o colega, que chama a colega, que chama a secretária do chefe, que chama o chefe, que telefona a alguém que grita do outro lado da linha. A rapariga do balcão esconde uma lágrima «por favor, aceite a minha sande» e depois outra sande surge de outro lado, e fruta e iogurtes. A mulher senta-se e enfia bocados de pão na boca do homem, enquanto mastiga, e depois aguarda. Passa uma hora, passam duas e, de rompante, uma figura feminina, enérgica, arrasta-os para dentro de um carro velho e leva-os para um Centro de Dia «agora pode falar, minha senhora, o que se passa?» «Temos fome, pago com trabalho, o meu marido é doente, não pode ficar sozinho em casa, pago com trabalho, sou uma pessoa, não sou um trapo velho, sei limpar, cozinhar, sei…» «Acalme-se, como se chama?» «Maria» «Maria, quê?» «Maria Benedita, não gosto lá muito do meu nome, sabe, mas foi o nome que me deram…» «Ora, tem um nome bonito, Benedita vem do latim e quer dizer abençoada, é uma mulher abençoada, Benedita, porque tem essa força dentro de si e vou ajudá-la. Poderá ficar aqui connosco, ajuda-nos a preparar as refeições para os idosos e o seu marido passará o dia junto de outros idosos, sempre terá companhia, assistência psicológica e a Benedita far-nos-á companhia a nós. Em troca, terão refeições, o nosso carinho, e ao fim do dia a carrinha que transporta os idosos deixa-os em casa. Parece-lhe bem?»
A mulher, tomada por uma alegria impetuosa aperta as mãos do homem e nota o que há muito lhe desaparecera do olhar: vida. «Há-des fazer a chanfana para o Toninho, não há-des?»
A mulher sorri.
«Sim, farei a chanfana».
*Chanfana - Prato tradicional português à base de carne de cabra, velha, assada dentro de panela de barro preto, em forno de lenha, temperada com vinho tinto, e outros temperos fortes.
*Ultramar - No caso de Portugal, as ex-colónias.
Este texto foi publicado na Revista Esteiro, em 2014, sob pseudónimo.
Imagem: Pixabay
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