ACONTECEU COMIGO! TE VI NA TV (O PERIGO DA ILUSÃO)

(Autorretrato) Eu mesma, a querer enfiar-me num buraco...

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Tinha acabado de gravar uma pequena cena para a telenovela “O Último Beijo”, e ainda não tinha visto como me saíra. Na verdade, não tinha tempo para ver novelas, nem mesmo as que participava, quase sempre em papéis insignificantes; tão insignificantes que o meu nome não constava. Eu era apenas uma atriz de palco, e aí, o meu nome existia; aí, eu existia; o palco era a minha casa.

Na altura deste acontecimento bizarro (mais um…) atuava no Teatro Ibérico de Lisboa e estávamos em cena com a peça “Hanjo”, de “Yukio Mishima”.

 Eu representava “Hanako”, a gueixa que enlouquece à espera do seu grande e único amor. E quando ele finalmente volta, ela não o reconhece… Esta peça puxava muito pelas minhas emoções e dos outros dois atores, que representavam a pintora “Jitsuko”, que se apaixonara por “Hanako”, e “Yoshio”, o amor que tardara em voltar. Eu acabava muitas vezes em lágrimas, pois incorporava uma personagem complexa sob o ponto de vista psicológico e espiritual; e jamais esquecerei o belíssimo jogo do leque, que guardava todos os segredos de “Hanako” e “Yoshio”.

Foi a peça mais difícil e mais reveladora da minha vida, uma viagem ao mais ignoto de mim... 

Estarei para sempre grata a Xosé Blanco Gil, que infelizmente já partiu (1946-2010), um dos encenadores que mais me marcou e que, apesar dos vários prémios que trouxe para Portugal foi tão pouco reconhecido, tal como tantos outros bons artistas neste e noutros países. O Xosé Blanco Gil fez-me sentir que o Teatro era tão profundo como a alma; o Teatro era a minha alma... 

Portanto, eu andava sempre a correr de casa para o palco e um trabalho a tempo inteiro, para sobreviver, pois o que ganhava como atriz não dava nem para refeições a pão e água…  não tinha mesmo tempo para ver novelas ou melhor, televisão, mesmo que quisesse.

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Na tarde deste bizarro acontecimento, o sol, brilhante e morno, despertava o meu desejo, quase desesperado, de ir até ao Rossio e sentar-me numa esplanada a beber uma cerveja, após horas de trabalho (temporário) numa conceituada multinacional, na linha de Sintra, onde secretariava a direção de marketing. Tinha saído da empresa numa correria, apanhado o autocarro e depois o comboio para casa. Apesar de cansada, desejava mesmo muito beber uma cerveja preguiçando ao sol. Mas não dava, não tinha tempo… Tinha de rever o texto em cima de um prato de comida rápida para depois apanhar o comboio para o Rossio, depois o autocarro para o Teatro, em Xabregas, e correr para os ensaios.

Impulsivamente vesti uma roupa mais prática, arrumei a mochila, agarrei o texto disposta a revê-lo no comboio, e saí porta fora, decidida a ir até ao Rossio e, mais tarde, para o teatro. Que se lixasse o cansaço!

Esfuziante, cheguei à estação de comboio das Mercês.

Vi aproximar-se um adolescente “sui generis” e preferi desviar o olhar porque esse rapazinho “sui generis” com uma faixa branca a envolver-lhe a testa, era um alerta, do tipo “não olhes, senão arranjas um problema”.

E não olhei, mas ele avançou na minha direção e tocou-me num braço.

«Então?» protestei.

«Te conheço, e tu vais sair comigo.»

«Tens idade para ser meu filho, respeita-me»

«Sou angolano de Angola e se sais com os outros, sais comigo, te vi na TV, fingida!»

Não podia acreditar. Mais uma vez (já tinha acontecido antes), estava a ser julgada na rua pela personagem de uma novela.

«Garoto, o que tu viste foi ficção, entendes, não é real, é novela, entendes?»

Apertou-me ainda mais o braço, e eu praguejei. Estava arreliada.

«Andas aí na “night”’, com a outra tua amiga bandida e não queres sair comigo, um angolano d’Angola?»

Deu-me um murro no braço, mas, na altura, não senti dor. Estava demasiado aturdida.

As pessoas passavam e fingiam não ver a cena. A velha história de não se meter “para não levar por tabela”.

Não havia um único elemento da Segurança na estação. Um senhor, dos vários que desembarcavam do comboio, deteve-se e arrancou-me das garras daquela imitação barata de Jimmy Hendrix.

«Eu t’apanho, tuga!» ― exclamou o rapaz.

E agarrou o meu salvador pela gola da camisa, deixando-o a contorcer-se, aterrorizado.

Felizmente chegaram dois senhores que, entretanto, arrebataram o outro, salvando-o de um possível estrangulamento, pois o belicoso adolescente era dotado de uma força brutal.

«És a vergonha da nossa terra!» ― disseram-lhe, indignados. «Não sabes respeitar uma senhora?»

«Bandida!» gritou-me, chispando um ódio dilacerante. «Te vi na TV!»

Os dois homens observaram-me.

«A senhora cometeu algum crime que tenha passado na televisão?»

«Nãoooo, credo!»

Então expliquei-lhes sobre o meu papel na telenovela da TVI, como Aldina, numa breve cena em que eu atuava como libertina e amiga de uma traficante qualquer…

A ilusão da TV…  Aí estava o busílis do conflito! Dá para acreditar?

 

 Local do acontecimento: Lisboa

Ano do acontecimento: 2003

 

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